A Cartomante – Versão de Camilo
(Emerson Pacheco, Cheyene Ayssa, Najara Eli, Priscila Nayara, Regiane Valadares, Dayane Barbosa, Jéssica de Almeida, Jéssica Aparecida, Camila de Azevedo e Renato – 201)
Numa sexta feira de Novembro de 1869, eu, Camilo, ria de Rita pelo fato de ela ter ido consultar uma cartomante. Rita me disse que eu não acreditava em nada. Mesmo assim me contou que a cartomante havia adivinhado que ela gostava de mim e que tinha medo que eu a esquecesse, mas isso não era verdade. Eu a interrompi rindo. Ela me pediu para parar de rir, porque andava muito mal por minha causa. Eu lhe peguei nas mãos e disse que também lhe queria muito e que quando tivesse algum receio, procurasse a mim mesmo como cartomante. Depois eu a repreendi e disse-lhe que era importante andar por essas casas, porque Vilela podia descobrir. Ela me disse que teve muita cautela ao entrar na casa. Perguntei onde era. Respondeu-me que era na Rua da Guarda Velha e que na ocasião não passava ninguém. Pediu- me pra ficar calmo, pois ela não era maluca e eu ri outra vez. Eu perguntei a ela se realmente acreditava nessas coisas.
Ela me disse que havia muitas coisas misteriosas e verdadeiras neste mundo. E que se eu não acreditava paciência: mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Rita agora estava tranqüila e satisfeita.
Tire cuidado no que eu iria falar, pois, não queria arrancar-lhe as ilusões. Eu também, quando criança era supersticioso, tive um arsenal inteiro de crendices que minha mãe me incutiu e que aos meus vinte anos desapareceram. No dia em que deixei cair toda essa vegetação parasita, fiquei no tronco da religião, eu, recebi da minha mãe ambos os ensinos, me envolvi na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Eu não acreditava em nada e não sabia por que, me limitava a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e eu não formulava a incredulidade. Diante do mistério contentei-me em levantar os ombros, e fui andando. Separei-me dela, eu ainda mais contente que ela. Ela estava certa de ser amada; eu não só estava certa de ser amada; eu não só estava, mas via ela se estremecer e arriscar por mim, ela corria à cartomante, e, por mais que eu a repreendesse não podia deixar de me sentir lisonjeado. A casa dos nossos encontros era na antiga Rua dos Barbonos onde morava uma com provinciana de Rita. Ela desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde ela mora: eu desci pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela e eu éramos amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado, e eu entrei no funcionalismo, contra a vontade de meu pai, que queria me ver um médico, mas meu pai morreu, eu preferi não ser nada, até que minha mãe me arranjou um emprego público. No princípio de 1869, Vilela voltou da província, onde casara com uma dama formosa e tonta: abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Eu arranjei uma casa para ele para os lados de Botafogo e fui a bordo recebe-lo.
Rita me disse que eu não podia imaginar o quanto Vilela era meu amigo e sempre falava de mim.
Eu e ele nos olhamos com ternura, éramos amigos de verdade. Depois confessei a mim mesmo que a mulher de Vilela não desmentia as cartas de seu marido. Realmente era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que nós dois: contava trinta anos, Vilela vinte nove e eu vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia parecer mais velho que a mulher dele, enquanto eu era um amigo na vida moral e prática. Faltava-me tanto a ação do tempo como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência nem intuição.
Unimo-nos os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a minha mãe, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos meus. Vilela cuidou do enterro, do sufrágio e do inventário. Rita tratou especialmente do meu coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegamos ao amor, eu não soube nunca. A verdade é que eu gostava de passar as horas ao lado dela: era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que eu aspirava nela, e em volta dela, para encorporá-lo em mim. Líamos os mesmos livros, íamos juntos a teatros e passeios. Ensinei a ela as damas e o xadrez e jogava-mos as noites: – ela mal. – eu, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muitas vezes os meus que me consultavam antes de fazer ao marido, as mãos frias e as atitudes insólitas. Um dia, fazendo eu anos, recebi de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que eu pude ler no próprio coração: não consegui arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares: mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passei com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Eu quis sinceramente fugir, mas já não pude. Rita como uma serpente, foi-se acercando em mim, envolveu-me todo, me fez estalar os ossos num espasmo, e pingou-me o veneno na boca. Eu fiquei atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo senti de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé e aí fomos ambos estrada a fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estávamos ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebi uma carta anônima, que me chamava imoral e pérfido, e dizia que minha aventura era sabida de todos. Eu respondi que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e minhas visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do meu procedimento. Viu que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que eu a repreendi por ter feito o que fez. Correram algumas semanas. Eu recebi mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas, despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: _ a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso fiquei mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio, Rita concordou que era possível.
Rita disse que levaria os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá apareceram; e que se alguma fosse igual, ela guardaria e rasgaria.
Nenhuma apareceu, mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em me dizer, e sobre isso deliberamos. A opinião dela é que eu devia tornar a casa deles, tatear o marido e pode ser até que lhe ouvisse a confidencia de algum negócio particular. Eu divergia: aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mas valia nos acautelar, sacrificando-nos por algumas semanas. Combinamos os meios de nos corresponder, em caso de necessidade, e nos separamos com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebi este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio dia. Eu sai logo, na rua adverti que teria sido mais natural me chamar ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se lhe trêmula. Eu combinei todas essas cousas com a notícia da véspera.
–Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia eu com os olhos no papel. Imaginariamente, vi a ponta da orelha de um drama. Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que eu o acudiria, e esperando para matar-me. Eu andando. De caminho, lembrei-me de ir a casa: podia achar algum recado de Rita, que me explicasse tudo. Não achei nada nem ninguém. Voltei à rua, e a idéia de estarmos descobertos parecia cada vez mais verossímil; era natural uma denuncia anônima, até da própria pessoa que me ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão de minhas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil viria confirmar o resto.
Eu ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos meus olhos, fixas, ou então, - o que era pior, - eram murmuradas ao meu ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas, assim, pela voz do outro, tinha um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, por quê? Era perto de uma da tarde. A emoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginei o que se iria passar, que cheguei a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrei a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse nada perdia, e a precaução era cítil. Logo depois rejeitava a idéia, vexando de mim mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num Tilburi. Cheguei, entrei e mandei seguir a trote largo.
- Quanto antes melhor, pensei eu; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote de cavalo veio agravar-me a comoção. O tempo voava, e eu não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o Tilburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra, Eu, em mim mesmo, estimei o obstáculo, e esperei, No fim de cinco minutos, reparei que ao lado, à esquerda, ao pé do Tilburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca eu desejei tanto crer na lição das cartas. Olhei, vi as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente destino.
Eu reclinei-me no tílburi, para não ver nada. Minha agitação era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-me voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; eu respondi que não, que esperasse. E inclinava-me para fitar a casa... Depois fiz um gesto incrédulo; era a idéia de ouvir a cartomante, que me passava ao longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu; apareceu; e tornou a esvair-me no cérebro, mas daí a pouco movi outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
- Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Eu fechava os olhos, pensava em outras cousas, mas a voz do marido sussurrava-me às orelhas as palavras da carta: “Vem já, já.” E eu via as contorções do drama e temia. A casa olhava para mim. Minhas pernas queriam descer e entrar... Eu me vi diante de um véu opaco... Pensei rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz de minha mãe repetia-me uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do príncipe da Dinamarca reboava-me dentro. “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia...” Que perdia eu se...?
Dei por mim na calçada, ao pé da porta, disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiei pelo corredor, e subi a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas eu não vi nem senti nada, trepei e bati. Não aparecendo ninguém, tive a idéia de descer, mas era tarde, a curiosidade fusticava-me o sangue, as fontes latejavam-me, tornai a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher, era a cartomante. Eu disse que ia consultá-la, ela me fez entrar. Dali, subimos ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima havia uma salinha, mal iluminada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante me fez sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no meu rosto. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente olhava para mim, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e me disse:
-Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Eu maravilhado fiz um gesto afirmativo.
- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
- A mim e a ela, expliquei vivamente.
A cartomante não sorriu, disse-me só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes, depois começou a estendê-las. Eu tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
Eu me inclinei para beber uma a uma das palavras. Então ela declarou-me que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro, eu e o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-me do amor que nos ligava, da beleza de Rita... Eu estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
Eu, apertando a mão da cartomante, lhe disse que havia me restituído a paz ao espírito.
Esta se levantou rindo.
- Vá disse ela, ragazzo inamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-me na testa. Eu estremeci, como se fosse mão da própria sibila, e levantei-me também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato de passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e come-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Eu, ansioso por sair, não sabia como pagar; ignorei o preço.
- Passas custam dinheiro, disse eu, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Eu tirei uma nota de dez mil reis, e dei a ela. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço era dois mil réis.
- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem: ela gosta muito do senhor, vá, vá tranqüilo. Olhe bem a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia comigo, falando com um leve sotaque. Despedi-me dela embaixo, e desci a escada que me levara a rua, enquanto a cartomante alegre com a paga tornava acima, cantarolando uma barcarola. Eu achei o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrei e segui a trote largo.
Tudo me parecia agora melhor, as outras cousas trazia outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Cheguei a rir dos meus receios, que chamei pueris; recordei os termos da carta de Vilela e reconheci que eram íntimos e familiares. Onde é que eu lhe descobrira a ameaça? Adverti também que eram urgentes, e que fizera mal m demorar-me tanto, podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
- Vamos, vamos depressa, repetia eu ao cocheiro.
E comigo, para explicar a demora ao amigo, engenhei qualquer cousa; parece que formei também o plano de aproveitar o incidente para tornar a antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-me na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o resto? O presente que se ignorava vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que minhas velhas crenças iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-me com as unhas de ferro. As vezes eu queria rir e ria de mim mesmo, algo vexado, mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo inamorato: e no fim ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os dois elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o meu coração ia alegre e impaciente, pensando horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória. Eu olhei para o mar, estendi os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e tive assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco cheguei à casa de Vilela. Apeei-me, empurrei a porta de ferro do jardim e entrei. A casa estava silenciosa. Subi os seis degraus de pedra, e mal tive tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-me Vilela.
Eu me desculpei, disse a ele que eu não pude ir mais cedo perguntei o motivo da carta.
Vilela não me respondeu; tinha as feições decompostas; fez-me um sinal, e fomos para uma saleta interior. Entrando, de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-me pela gola, e com dois tiros de revólver...